Reflexões de um homem/ônibus.

“Dou-te mil vezes amor e beijos, se ficares comigo por um mísero segundo.” Eu disse para ela, sem nunca ter dito a verdade, sobre meus desejos e sonhos. Para quê desejos, se o que vale é não perder o ônibus? Estar na hora certa, é uma dádiva, talvez, imprescindível para a vitória sobre o cotidiano. Na periferia nasci, cresci e morri. E de lá sei que nunca sairei. No centro da periferia, não há estereótipos ou preconceitos, apenas comunhão, apenas comunhão de um ‘vir-a-ser”, uma vontade de ter dinheiro e não precisar pegar o ônibus ás 6h da manhã e chegar no trabalho ás 8h. Onde nasci, na cidade, não há cheiro de bosta de vaca. Há, acho que cascalho, subúrbios dentro de subúrbios. O que há são potenciais assassinos, desejos interrompidos, Freud chamou-o de ‘recalque’. Penso em não perder o horário do ônibus, chegar atrasado me incomoda e pode me levar a deserção. Meus pensamentos ficam limitados diante da minha derrota cotidiana, comprar o pão, fazer café, olhar meus filhos, calçar sapato, meia furada, cueca suja, creme de barbear pouco. Apenas o ônibus que nunca chega na hora certa. Atrasado. Sempre atrasado como nas periferias dos “subdesenvolvimentos” que eu aprendi na 5ª série. Ônibus que não vem, mesmo quando chego cedo. Parada lotada, perfumes da Avon, se misturam. Perfumes baratos que se isolam. Nada dizem. Compartilhar não é palavra de ônibus, de espera, sobre atrasar. Antes que ele chegue, eu almejo em cada lampejo, a esperança de que ônibus chegue rápido, e me leve ao destino, como ontem, anteontem, anteontem, e assim, e assim, e assim. Passadas algumas horas, alguém reclama, “meu deus esse ônibus quebrou?”, está atrasado dez minutos. Penso na eternidade de dez minutos, se fazem vidas, destroem-se vidas em dez minutos, muito coisa se faz. Quanto tempo terei de vida? Dez minutos é pouco para pensar no tempo de vida. Um tiro aplaca minha dor. Peito sangrando só pode ser dor. Esperar, a porta do ônibus se abre, adentro ansiosamente em busca da cadeira vazia. Não há, apenas braços, bundas, pênis, perfumes da Avon, desodorante, suor, desejo, periferia e todos espremidos em doses inconsistentes de “pedindo” de passagem. O sol já vem entrando com força e intensidade pelas ocas janelas do veículo, chegou ao ponto final, já são quase 8 horas, e eu queria que já fossem 18 horas. Ir embora não faz sentido, o cansaço de um dia é dureza. Pão para os filhos, justifica a minha sina. Trabalhar para sustentar o ônibus é um diurética. Elixir parigórico para dor de barriga. Diarréia só costuma dar dentro do ônibus. Não sei se sou eu, ou uma nota de 5 reais encontrada no meio do barro, poderia ser eu, não haveria problemas. O segredo não é chegar atrasado na parada, a tática é ter pernas, braços e mãos para acenar, se não ele vai, e com ele vai também o meu pão de cada dia, carrego uma dor, que não deixa de ser periférica, queria nunca perder o ônibus, mas ele custa tanto a chegar, que prefiro esquecer que moro aqui. Um pedaço de mim queria ter nascido no centro da cidade.

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