Pela escola que há em mim: Homenagem a Escola Marcello Cândia, subsede Bairro Marcos Freire e aos Formandos de 2004.
Acordo assustado, mamãe gritando no meu pé do ouvido: "Levanta menino, tu vai te atrasar pra escola... E chama aí tua irmã", como se com a voz estridente e ressonante, já não tivesse tirado minha irmã de seu sono sacro. Mesmo à contragosto, levanto a cabeça, porém o corpo desobedece a ordem originada de meus poucos neurônios ainda ativos. Insisto novamente nesse intento hercúleo, porém apesar das minhas "boas intenções", minha mãe interfere, serenamente, com sua voz que ecoa, algo semelhante a algum cântico monástico, repetido e mimetizado por mim, quando ela diz: "Olha eu tô só falando pra tu levantar, agora se eu for aí, eu te puxo dessa cama e te dou um banho, e tu vai pra escola de couro quente", penso que palavras podem doer tanto quanto a realidade.
Levanto e espero minha hora de ir banheiro. Entro naquele lugar úmido e de chão gélido. Escovo os dentes com os olhos fechados, cumpro somente o estrito das regras de higiene pessoal. Visto meu uniforme azul, e dependendo do dia, podia ser aquele normal, calça jeans azul e camiseta azul marinho da escola ou o short de educação física com a camiseta azul com o símbolo e o nome "Escola Dr. Marcelo Cândia", inclusive depois fiquei sabendo que se escrevia "Marcelo", com dois "L"s, não se sei isto interferiu em algo, mas, é importante manter as regras, como dizia a irmã Carmem.
O caminho para a escola começa sozinho, porém a medida em que dou passos pelas ruas de cascalho, outros com o uniforme idênticos ao meu, tornam-me pertencente a uma comunidade de iguais, meus defeitos e feiúras de casa ficaram para trás, agora somos todos parte de uma família maior: A-luno do Marcello Cândia com dois L's. Quando me perguntavam onde eu estudava, eu sempre dizia, eu estudo na Escola Marcello Cândia-MF, e quase sempre alguém respondia: Ah! Sim o colégio das irmãs Marcelinas?!, e minha resposta era sempre a mesma: É! Dizem que lá o ensino é muito bom, muito difícil conseguir uma vaga lá. E eu, meio que envergonhado, guardava comigo a expressão: "Obrigado pelo elogio, eu sou aluno do Santa Marcelina". O que de certa forma não iria interferir, em nenhum modo, na maneira como eu enxergava os detalhes daquele trajeto até a escola.
Na esquina da minha casa havia tragédia. Não sei muito bem o que aconteceu, mas lembro-me muito bem da cruz que havia na frente da casa da vizinha Gerusa, a primeira mulher no mundo a ter um telefone fixo, já que naqueles tempos, ter um telefone em casa, era coisa de rico. Ás vezes quando olho para o telefone de casa, penso que ser rico é ter um aparelho de telefone em casa. Me sinto infinita, e depois passageiramente rico. Mas, retomando o caminho para a escola, sempre tive medo daquela cruz, dizem que um cara matou o outro com foice, e na minha cabeça sempre vinha a ideia macabra de pedaços humanos jogados ao chão, sempre à minha espreita, prontos para correrem atrás de mim, assim que eu passasse por lá, porém, eles nunca me pegariam mesmo, afinal, no intuito de evitar confusões com seres do Além, eu sempre passava correndo, bem rápido. Se quiserem me pegar, vão ter que me alcançar na esquina do "Bar do Cabeludo", onde algumas vezes via homens jogando sinuca e bebendo.
Passo em frente do "Bar do Cabeludo", tenho vontade de comprar uma ficha e jogar fliperama, mas recordo-me instantaneamente que dinheiro não há comigo. Não tenho sequer 50 centavos para comprar o essencial da minha vida: Uma ficha para o fliperama. Ando, e meio que de soslaio, prometo que no retorno da aula, irei jogar uma partida contra "A máquina", e que certamente vou mais uma vez perder, mas nada me impedirá de, pelo menos, tentar uma vitória no estilo Karatê Kid: O desafio final. Na próxima esquina, outros meninos e meninas com o uniforme azul, se integram ao pelotão desorganizado que vai em direção da escola, alguns solitários como eu, outros nem tanto, mas todos aparentemente, carregados de uma ansiedade inigualável. Afinal, chegar atrasado, pode causar sérios problemas, e é disso que me orgulho: "Nunca ter chegado atrasado na escola Marcello Cândia". Mentira, por uma vez cheguei atrasado, mas por acaso do destino, o professor Aguinaldo, também diretor da peça de teatro que eu participava, colocou-me clandestinamente dentro de seu carro, e aí eu entrei dentro da escola ou sem ser notado ou os olhos de águia da irmã Carmem, abriram uma exceção para mim. Disso nunca saberei a resposta.
Da calçada até á escola, são alguns metros de distância. O portão bate em meu coração com uma saudade imensa que humilha com folga minha vontade de parar ali, porém adentro o espaço da escola. Olho para trás, mas minha mãe é muito devota e católica, certamente não irá me aceitar, se eu retornar para casa e disser: "Mãe não quero mais estudar, quero ser aposentado", sei que ela reprovará minha atitude, e com certeza, será a primeira a me entregar para o "CONSELHO TUTELAR". Nunca fui mandado à força para tal local, e nem quero ir. Quero ficar aqui mesmo, protegido, com meus amigos velhos da 8ª série, com meus amigos novos do 3º ano do ensino médio e com meus amigos de teatro, que tanto amo e certamente amarei para sempre.
Desculpe-me não poder terminar este texto, bateu o sino das 7h10, momento de oração diário na quadra com a diretora, Irmã Carmem, não posso e não quero chegar atrasado. Ser proibido de entrar na quadra nesse momento, pode trazer-me problemas de toda ordem. Olho meninos e meninas correndo feito uns foguetes fora de órbita, e eu caminho como se o tempo estivesse parado, como se o tempo me esperasse propositalmente para juntar-me aos meus pares.
Sinto-me como se isso nunca fosse acabar, e bem que eu quero que nunca acabe. Sempre acordar, levantar, banheiro, escola, Irmã Carmem me olhando com severidade, a professora de Biologia dizendo que minha irmã Guidu está indo mal na matéria, o pessoal do teatro me chamando pra ensaiar "O rei e o rosário", o festival de música, as garotas que nunca me olhavam, as notas altas em História, a professora Eliane, a merenda que o governo não mandava para gente, mas a diretora não nos deixava morrer de fome, e etc, etc.
Enfim, continuo sentado no chão da escola Marcello Cândia, esperando que o sino bata e a professora Eunice me chame para entrar, eu enceno não querer, mas entro e concluo, penso que acertadamente, de lá nunca sairei.
Filme passando em minha mente agora. difícil descrever a importância dessa escola e de todos que ali trabalhabam
ResponderExcluirFranqlei era uma bixona conceituada na época
ExcluirEu me lembro que o Franqlei e vários outros eram umas baitas de umas bixonas
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